segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Anos 20 - A vanguarda Russa

Anos 20 - A vanguarda Russa

Nomes como Serguei Eisenstein, Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin e Lev Kuleshov criaram as bases para praticamente tudo o que se desenvolveu em termos de montagem no período que os sucedeu, além de fornecerem sólida base teórica para as gerações seguintes.

O INTERESSE DO PARTIDO COMUNISTA


Primeiramente, é importante sabermos que os cineastas da Vanguarda Russa eram filiados e militantes do Partido Comunista e, portanto, adeptos do marxismo-leninismo (orientação filosófica dos bolcheviques), sendo incentivados por dois nomes fundamentais deste Partido: Trotsky e Lênin. Ambos perceberam o poder que o cinema exercia sobre as massas e o potencial revolucionário e artístico que este veículo artístico poderia oferecer.

Assim, o Partido lhes conferiu plena liberdade criativa e estética, desde que, claro, os filmes fossem concebidos como um instrumento para a edificação e a consolidação do socialismo, cuja função seria educar o espírito do povo e colaborar de forma decisiva para a materialização do espírito da Revolução. Em outras palavras, os caras tinham apoio financeiro, institucional e intelectual para fazer o que quisessem, desde que o propósito maior fosse o propósito revolucionário.

E foi dessa forma, sob essas condições, que alguns jovens cineastas militantes marxistas mudariam para sempre o cinema. Os russos, ao rejeitarem o cinema tradicional como burguês, individualista, alienado e alienante, acabaram, cada um a seu modo, por revolucionar o cinema enquanto arte, linguagem e técnica. E essa revolução se deu através do que é indubitavelmente o maior legado: a montagem.

Reside aí, sem dúvida alguma, a maior contribuição da vanguarda russa. Os nossos jovens cineastas perceberam que residia na montagem o grande potencial do cinema de falar diretamente às consciências soviéticas. No ímpeto de levar o cinema ao máximo de sua expressão e potencialidade, para que a idéia Comunista fosse vivida e revivida da forma mais complexa e intensa possível, fizeram obras-primas irretocáveis, peças cinematográficas cuja complexidade é estudada, admirada e que saltam aos olhos mesmo nos dias atuais, onde temos à nossa disposição um sem número de artifícios tecnológicos sequer imaginados naquela sensacional década para o cinema, a década de 20.

Talvez, hoje, isso seja uma obviedade: todos sabemos que a montagem ‘manipula’, que somos sugestionados por cores, ordem, alternâncias, volumes, massas, proporções e que conceitos podem ser sugeridos ou mesmo criados. Basta que vejamos como funciona a publicidade para constatarmos que tais procedimentos são utilizados há décadas. Ok. O que pouca gente sabe é que, para que existam tais conceitos, tais técnicas de montagem, de manipulação, alguém teve que ‘criá-las’ e desenvolvê-las. E são esses jovens, mais especificamente dois deles, os responsáveis por tê-lo feito: Dziga Vertov e Serguei Eisenstein.


VERTOV E O CINEMA-VERDADE




Começo então por Dziga Vertov, um dos grandes gênios do cinema, injusta e infelizmente desconhecido. Um homem com um olhar absolutamente particular da imagem em movimento, cuja obra espanta até hoje pelo vigor, coragem e modernidade. Para Vertov, o cinema deveria buscar sua identidade própria e se afastar de maneira definitiva da Literatura, do Teatro e de toda e qualquer ficção. Para ele a ficção era algo menor, que não era digno do potencial do veículo.



Num dos manifestos de seu grupo denominado Kino Pravda (Cinema Verdade), que era formado por alguns adeptos de suas teorias, ele dizia: “NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra / NÓS afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente / NÓS os concitamos a acelerar sua morte”. Vertov reivindicava um novo cinema, um cinema feita apenas da realidade, sem qualquer utilização da ficção. Um cinema feito através do que ele denominava de CINE-OLHO.



A câmera seria, para ele, uma extensão do olho humano (por isso a idéia de cine-olho)



e do verdadeiro Cinema deveria e só poderia ser feito através da captação de imagens da realidade concreta e objetiva vivida. Então, na sala de montagem, uma nova realidade poderia ser criada por meio da forma e da velocidade com que os planos (fragmentos da realidade) se alternavam. Complicado não? Pois é. Para ele, o cinema é um veículo onde uma nova realidade pode ser construída, um veículo que deveria estar anos-luz além de ‘contar histórias’. E esta realidade, para Vertov, deveria ser criada pelo talento, capacidade e domínio que o cineasta-montador-cientista deve ter das teorias e técnicas científicas de montagem que já se colocavam presentes e que ali estavam sendo desenvolvidas.

Claro que há muito mais elementos envolvidos nas teorias radicais e revolucionárias de Vertov, mas a idéia aqui não é fazer uma exposição teórica e sim demonstrar a genialidade e o fascínio de obras que são desconhecidas de muitos cinéfilos. Assim sendo, recomendo o filme mais importante de Dziga Vertov, O Homem Com Uma Câmera, de 1929. Nele, Vertov coloca em prática toda sua concepção teórica e realiza um filme visualmente deslumbrante, frenético e hipnotizante. Sem nenhum exagero, deixa pra trás 90 por cento do que vemos na MTV e consideramos como ‘inovador’ e ‘moderno’.





Não há experiência mais radical e fascinante de montagem na história do cinema. Um Homem Com Uma Câmera é uma verdadeira sinfonia cinematográfica que até hoje espanta e fascina estudiosos e cineastas de todo o mundo. Exemplo do fascínio exercido por Vertov? Ninguém menos que o francês Jean-Luc Godard criou, nos anos 70, um grupo denominado “Dziga Vertov”, que buscava ampliar as possibilidades do cinema, tentando levar a arte ao seu limite. Uma homenagem do grande mestre francês ao seu mestre russo.



Além disso, este se tornou um dos filmes mais importantes para a história do Documentário, fazendo par com Nanook do Norte, Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, O Triunfo da Vontade, entre outros ‘pais fundadores’ do gênero, além de servir de inspiração para vários cineastas, como, por exemplo, o excelente Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos, de Marcelo Masagão, no qual são utilizadas várias das imagens dessa obra de Vertov. Também em obras muito admiradas como Koyaanisqatsi – Vida Em Desequilíbrio vê-se a influencia direta deste admirável talento russo.



EISENSTEIN E A MONTAGEM DIALÉTICA



Porém, sem dúvida alguma, o maior e mais importante nome do Cinema de Vanguarda Russo é Serguei Eisenstein, talvez o único cineasta da história do cinema que tenha tanta importância como diretor quanto como teórico. Na verdade, é difícil estabelecer tal diferenciação na medida em que seus filmes complementam seu trabalho teórico e vice-versa. Assim como Vertov, Eisenstein trabalhou a serviço do Partido e da Revolução e erigiu toda sua obra buscando aperfeiçoar ao máximo a linguagem cinematográfica, dando à montagem o papel primordial do cinema.



Ele é o criador da “montagem de atrações”, também conhecida como “montagem intelectual” ou “montagem dialética”, que tem clara inspiração na dialética marxista que, grosso modo, acredita que tese e antítese, quando em conflito na realidade, resultam numa síntese que é diferente de ambos, sendo algo novo, maior que a mera soma das duas partes e construído a partir da relação entre estas. Posto de forma mais simples: A + B gera algo maior e diferente que C.



Eisenstein, então, leva essa premissa para a montagem cinematográfica, utilizando-a como base para elaboração da mais complexa e importante Teoria da Montagem já feita até hoje. Para ele, um plano A combinado com um outro plano B, geraria no espectador um resultado C, que é diferente da mera combinação dos dois planos e advém do resultado dos conflitos e atrações existentes na relação entre A e B. Ou seja, o sentido do filme poderia ser construído. O cinema agora poderia gerar conceitos, idéias e significados antes nunca imaginados.



Está confuso(a)? Bom... é de fato uma idéia bastante complexa de cinema, mas o importante – mais do que compreender as minúcias da teoria de Eisenstein - é ver a implicação disso para a História do Cinema. O termo “montagem intelectual” significa realizar intelectualmente uma montagem, conceber racionalmente o resultado de determinada seqüência de planos, de modo a manipular, sugestionar, ou mesmo criar um conceito inteiramente novo na cabeça do espectador.



Ok. Mas como realizar, de fato, a montagem de atrações? Como ‘controlar’ as relações entre os planos, como saber que conflitos e atrações os planos têm entre si? Em outras palavras, “Tudo bem, é possível manipular, criar, sugestionar e etc, mas como?”. A resposta a esta questão revela ao mesmo tempo a grandiosidade e a complexidade de Eisenstein: em livros fundamentais como A Forma do Filme e O Sentido do Filme, além de outros textos, ele mostra quais são os tipos de conflitos existentes entre os planos (massas, volumes e, direção, por exemplo), a forma de se relacionarem estes planos, as relações entre cinema e realidade, o propósito revolucionário do cinema, entre várias outras coisas, incluindo concepções e analogias com várias outras artes.



Mais uma vez, repito que o objetivo aqui não é ‘ensinar’ a teoria desse ou daquele autor, mas abordar, mesmo que superficialmente, alguns aspectos sem os quais não é possível entendermos a grandiosidade dessas obras ou mesmo curtirmos com intensidade seus efeitos – e este é, afinal, o grande propósito de nossa Moviola.



E, falando em filmes, vamos a eles, começando com A Greve, de 1923, que recria uma greve ocorrida em 1912 na Rússia. Nele, Eisenstein começa a empregar suas teorias de montagem de modo a induzir e a manipular o espectador, mesmo que de maneira ainda pouco complexa se comparada com o que veríamos em seguida. Ainda sim, ele lança mão de vários artifícios de manipulação altamente engenhosos e revolucionários que fazem com que o filme permaneça interessante e vivo. Atenção especial para a seqüência do matadouro, quase ao final do filme, onde Eisenstein realiza uma metáfora visual até hoje presente em qualquer antologia e que foi homenageada por Francis Ford Coppola em seu soberbo Apocalipse Now, filme sobre o qual certamente voltaremos a falar neste espaço.



A OBRA-PRIMA



Dois anos depois, em 1925, Eisenstein realiza O Encouraçado Potemkim, que permanece sendo sua maior obra-prima. Nesse filme, Eisenstein desenvolve ainda mais as já bem sucedidas experiências realizadas em A Greve, construindo um filme no qual suas concepções teóricas de montagem ganham a envergadura que merecem. Além disso, é um filme esteticamente primoroso, onde não só a montagem é revolucionária, mas a utilização da movimentação de câmera, dos enquadramentos e da fotografia magnificamente concebida.



Um momento em que toda a maestria de Eisenstein pode ser verificada é a famosa cena da Escadaria de Odessa, onde os Cossacos (espécie de polícia do Czarismo) descem a escada massacrando impiedosamente o povo que lá se encontra. Primeiro, pela utilização primorosa da linguagem cinematográfica para seus fins politicamente revolucionários, ou seja, ele está, obviamente, do lado do povo. Os soldados, então, são mostrados perfilados e a tal distância que suas faces não podem ser vistas, ‘humanizadas’. Já o povo massacrado é mostrado sempre em ‘close’ por Eisenstein: vemos seus rostos carcomidos pela miséria, pelo medo. O que Eisenstein está fazendo com isso? Está dizendo, através da linguagem cinematográfica, que o poder não ter rosto, não é humano e massacra impiedosamente o povo – este, sim, com o rosto mostrado em detalhe, causando a imediata identificação do espectador. Somado a isso, o diretor cria situações de suspense que são narradas paralelamente (como a mulher que pede clemência e o carrinho do bebê), dando à cena novos elementos que funcionam não só dramaticamente como fornecem elementos para uma combinação frenética de planos que leva em conta as idéias da montagem de atrações.



Ou seja, O Encouraçado Potemkin é uma obra-prima revolucionária porque, nele, Eisenstein une os vários artifícios da gramática cinematográfica disponíveis até então (montagem paralela, zoom, travelling) à sua própria concepção absolutamente revolucionária de montagem. Especula-se que Lênin, ao solicitar a Eisenstein um filme elogioso do proletariado e da Revolução, teria lhe dito: “Quero O Nascimento de Uma Nação russo”. Ou seja, um filme com a importância, o poder e o alcance que o filme de D.W. Griffith obteve nos EUA. Eisenstein deu-lhe O Encouraçado Potemkin. Mais tarde, na Alemanha em 1934, um certo Goebbels solicitaria a uma jovem e talentosa cineasta “O Encouraçado Potemkin do Terceiro Reich” e a jovem, chamada Leni Riefenstahl, ofereceu-lhe O Triunfo Da Vontade.



Por que conto essa história? Primeiro, para demonstrar na prática a importância do estudo dos mestres da linguagem para o desenvolvimento da mesma, visto que Eisenstein somou suas teorias aos ensinamentos que obteve de Griffith e realizou Encouraçado, que foi o filme com o qual Riefenstahl aprendeu várias das lições que, por sua vez, aperfeiçoou em O Triunfo da Vontade, até hoje um manual da manipulação política. (Qual seria o equivalente brasileiro? Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas divago.) Além disso, porque julgo fundamental reforçar a absoluta importância de O Encouraçado Potemkin para a História do Cinema.





E fecho o Eisenstein da década de 20 com Outubro, de 1927, que o cineasta rodou em comemoração aos 10 anos da Revolução Russa. Neste filme, Eisenstein chega ao extremo em suas concepções de montagem, buscando não mais contar uma história linear, mas unindo vários fragmentos históricos a fim de conferir um sentido posterior, maior e diverso dos sentidos originais dos planos. Para alguns, Outubro é a afirmação definitiva do cinema como máquina psicológica. Para outros, o filme, de tão fragmentado, chega ao incompreensível. Bem, não é a obra-prima de Eisenstein, mas ainda sim é um filme que merece muita atenção e estudo.



É no mínimo curioso saber que Eisenstein levava tão a sério a sua idéia de que conceitos poderiam ser ‘criados’ através da montagem, que chegou a cogitar filmar nada mais nada menos que “O Capital”, a obra maior (em todos os sentidos!) de Karl Marx. O que e como seria esse filme? É algo que nunca saberemos, mas só a intenção de fazê-lo nos revela muito sobre como a mente desse grande gênio concebia o cinema.



Ainda há outros grandes nomes do cinema de Vanguarda Russo, como, por exemplo, Vsevolod Pudovkin, autor do clássico A Mãe, de 1926, além de vários textos importantíssimos sobre cinema e especialmente sobre a montagem; e Iakov Protazanov, diretor de Aelita, de 1924, clássico filme futurista. Porém, por questões de tempo e espaço, esta Moviola se ateve aos dois que considera como os grandes gênios desse período, aos quais certamente o cinema e o audiovisual devem muito de seu desenvolvimento e evolução.



O EFEITO KULESHOV



Antes de me despedir, há algo que preciso esclarecer: na coluna passada, citei o “Efeito Kuleshov” quando falava de Buster Keaton e disse que o abordaria nesta coluna. Pois bem, Lev Kuleshov, um dos cineastas do Partido, realizou na década de 20 uma experiência que ficaria na história do cinema como sendo a primeira a comprovar de fato o poder de sugestão que a montagem pode exercer sobre o espectador: filmou-se um plano de um ator com expressão neutra e, posteriormente, esta imagem era alternada com planos de diferentes conotações: uma criança, uma mulher num caixão e um prato de sopa.



Ao assistir aos diferentes “filmetes”, a platéia de teste via nuances de interpretação, achava que a face do ator representava a ternura quando em justaposição com a criança, a tristeza ao ver a mulher no caixão e a fome quando em justaposição com o prato de sopa. Essa experiência foi utilizada por todos os russos e foi fundamental para a elaboração das teorias da montagem que vimos aqui hoje. Alfred Hitchcock alude à experiência em seu genial Janela Indiscreta. James Stewart está olhando para um cachorrinho e sua expressão é de inocência; então, nos é apresentado um plano de uma mulher nua e, quando voltamos a Stewart, sua expressão é a de um velho safado! Chique, não?

Texto original aqui:
http://www.cinemaemcena.com.br/cinemacena/variedades_textos.asp?cod=157

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